Luiz Alberto Gómez de Souza |
Luiz Alberto Gómez de
Souza*
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ano de conflitos: “uma terceira guerra
mundial pode ter começado aos poucos, com crimes, massacres e destruições”,
nas palavras angustiadas de Francisco. Síria devastada; nascimento de um novo
califado islâmico no norte dessa mesma Síria e em boa parte do Iraque, até
perto de Bagdá – antiga sede gloriosa do califado abássida (750 - 1258), perseguindo muçulmanos chiitas, mesmo alguns sunitas,
alauitas, yázidis, curdos e minorias cristãs, degolando ocidentais
sequestrados; Paquistão e Afeganistão ameaçados pelos Talibãs; Boko Haram, na
Nigéria, sequestrando meninas e querendo criar outro estado islâmico; Ucrânia,
perdendo a Criméia e com suas províncias orientais ameaçando secessão; milhares
de refugiados subsaarianos e árabes, desembarcando na Itália e na Espanha em
frágeis embarcações, deixando para trás seus mortos que pereceram na viagem. E
poderíamos elencar outros conflitos, muitos endêmicos, como no Sudão. Ao mesmo
tempo, a Arábia Saudita e os Estados Unidos jogando para baixo o preço do
petróleo em manobras especulativas, criam problemas para outros países
produtores, inclusive para o pré-sal no Brasil. Governos europeus enfraquecidos
tentam contornar suas crises com medidas duras exigidas pela Merkel; porém, em
outra direção, vem à esperança da vitória, na Grécia, do renovador partido
Syrisa. Barak Obama está em parte neutralizado por um congresso reacionário e
racista. Mas em sentido contrário, temos Brasil, Argentina, Uruguai, Chile,
Bolívia, Equador, Nicarágua, El Salvador e Venezuela com políticas sociais
populares, para horror de suas elites atrasadas, que controlam mídias ferozes e
derrotistas. À frente, três mulheres valentes e um índio aimara.
E
no fim do ano, em 17 de dezembro, uma notícia inesperada e feliz, para os que
não aceitávamos o embargo a Cuba de tantas décadas. Um diálogo entre Obama e
Raul Castro, através da discreta e firme mediação do bispo de Roma, que nesse
dia completava 78 anos. Olhando o ano que terminou, estamos descobrindo
Francisco como o personagem mais luminoso, num mundo carente de expressivas
lideranças. Na sua recente Mensagem de Natal, exigiu paz e diálogo num planeta
em crise. E no pronunciamento de 1º de janeiro, insistiu que “a paz é sempre
possível”. Há muito tempo não se tinha visto uma personalidade tão forte e ao
mesmo tempo com meios materiais tão frágeis. “Quantas divisões tem o Papa?” perguntara irônico o poderoso
Stalin. A força de Francisco vem de uma ética e de uma espiritualidade
irradiantes e de uma enorme capacidade de escuta e de diálogo.
A
história caminha enviesada. Um culto da personalidade envolvia Stalin e Pio XII
na metade do século passado. Mas, um pouco adiante chegou, na Igreja Católica, “um homem chamado João”, simples e
sorridente, espalhando sinais de uma “inesperada primavera”, como ele mesmo
disse ao anunciar o concílio Vaticano II. Entretanto, anos depois, veio o que o
teólogo jesuíta João Batista Libânio chamou, “a volta à grande disciplina”, ou um “inverno na Igreja”.
Eis
que, em 13 de março de 2013, outro homem, chegando “do fim do mundo” para ser bispo de Roma, teve a valente ousadia de
chamar-se Francisco, como o pobre de Assis. E, em sua primeira aparição pública
na Praça de São Pedro, inclinando-se, pediu que a multidão o abençoasse, isto é, invocasse sobre ele a
força do Espírito. Antes apelou para a comunidade, depois deu a bênção como
bispo recém-eleito. Deu-se uma significativa e eloquente inversão. O povo de
Deus precedia o bispo, fazendo real o que era antes apenas uma figura de
retórica: este último como “servo dos
servos de Deus”. Quando João Paulo II veio ao Brasil, em 1980, num livro que
editei sobre a visita, pus o título: “O
povo e o papa”, era aquele que vinha antes e acolhia este último.
Desde
sua eleição, Francisco não deixou de surpreender. Antes de vir ao Brasil, para
uma jornada da juventude desenhada como um grande espetáculo no estilo de seus
antecessores, praticamente só, foi à ilha de Lampedusa, ao encontro de
refugiados subsaarianos e árabes e celebrou com eles, num altar que era uma
embarcação emborcada e semidestruída, empunhando uma cruz feita com um remo
empapado de dor e sangue. Abraçou aqueles corpos sujos e suarentos e lembrou
aos muçulmanos ali presentes, a força e o significado do seu Ramadã. Afastou-se
dos aposentos principescos de uma Roma imperial e se instalou numa pousada para
peregrinos de passagem. Sua pedagogia não consiste em repisar doutrinas e
preceitos (“eles estão aí”, indicou sem
dar detalhes), mas em clamar por compaixão e misericórdia. Ao mesmo tempo,
teve palavras duras para uma Igreja encerrada num gueto narcisista. E, já em
suas alocuções no Rio de Janeiro, exigiu uma saída ao mundo, correndo os riscos
e as ciladas de uma sociedade minada por conflitos, ambições e individualismos.
Nada
exprime melhor a valentia de seu ensinamento do que sua dura alocução aos
membros da cúria romana, bastião de poder corroído por lutas de interesses que
provocaram a renúncia de seu antecessor. Ali apresentou quinze possíveis
doenças. Entre outras, um Alzheimer espiritual (perda das faculdades espirituais), esquizofrenia existencial,
rivalidades, murmurações, círculos fechados, indiferença para com os outros,
sisudez, exibicionismo. E terminou com um pedido que sempre tem repetido: “Não vos esqueçais de rezar por mim”.
Alguns
tradicionalistas estão protestando: não reitera doutrinas, para eles
indispensáveis de serem repisadas. Do outro lado, outros, afoitos, reclamam
que, até agora, ele não inovou em doutrinas e normas. Os primeiros se queixam
de sua imprevisibilidade e um chegou a afirmar que, “continua perturbando a tranquilidade do mundo católico”, que
vegetaria nas águas mornas das rotinas. Os segundos seguem com o mau hábito de
aguardar mudanças vindas de cima, através de alocuções magisteriais. Esquecem
que o importante é esperar que as transformações subam das práticas e das ações
concretas e que devem colaborar para tal. Jesus não trouxe um conjunto de
normas, como um código canônico antecipado. Ao contrário, violou preceitos
fazendo milagres no sábado e entrando na casa de publicanos. O receituário era
mais bem próprio dos fariseus legalistas, encastelados em seus princípios, mas
tantas vezes “sepulcros caiados”.
Para Francisco, antes de tudo, o importante é criar um clima novo, um chamado à
conversão, isto é, procurar mudanças de rumos (con-vertere).
Nomeou
uma comissão de oito cardeais para que o assessorem, fora dos hábitos curiais.
Como presidente dela, colocou outro latino-americano, bispo de um pequeno e
pobre país da América Central, na quase desconhecida Tegucigalpa. E numa
reunião com cardeais, solicitou ao alemão Kasper, crítico ácido dos hábitos romanos,
que levantasse questões sobre um tema que lhe é caro, o tema da família. A
imprensa se fixou nas normas de sua indissolubilidade e na união de hétero e de
homossexuais. Mas o fundo último dessa temática não é uma instituição, porém a
relação amorosa entre os seres humanos.
Francisco
convocou um sínodo extraordinário, em outubro de 2014, sobre os problemas da
família. Mas repito, o tema fundante na raiz mesmo da família e de qualquer
relação, é sempre o amor. No sacramento do matrimônio, os oficiantes são os
cônjuges, num ato de entrega amorosa. No convite ao casamento, amigos e um
sacerdote são convidados para apenas testemunhar, em nome da comunidade (ecclesia), quando eles dois se irão dar
um ao outro (objeto direto) o
matrimônio. Fica uma pergunta no ar, hoje ainda sem resposta, para repensar o
sacramento. Se o elo é o amor e os agentes sacramentais o casal, que acontece
quando o amor se esvai e um novo amor pode surgir? Não estamos muitas vezes
reduzindo o sacramento do matrimônio a um ato mecânico?
Na
metade do sínodo, um bispo, Bruno Forte, teólogo agudo, apresentou uma “relatio” insinuando a necessidade de
mudanças, provocando fortes reações. O testemunho de um casal australiano,
também vindo “do fim do mundo”,
mostrou, a partir de uma experiência concreta, a necessidade de ter uma
abertura aos temas da homossexualidade no interior das famílias. Foram
aplaudidos, mas logo o Cardeal Burke e grupos pro-vida reagiram contra. O casal
brasileiro, afirmando o uso pessoal dos métodos contraceptivos ditos naturais,
indicou que eles, muitas vezes, carecem de praticidade. Aliás, a distinção
entre natural e artificial, no relativo aos métodos contraceptivos, suporia uma
natureza imutável, o que vem sendo questionado desde os alvores da modernidade.
Para Emmanuel Mounier, na aurora dos tempos modernos, os componentes habituais
da ideia de natureza (imobilidade,
equilíbrio, perfeição circular), cederam lugar a um destino aberto, “em direção ao imprevisível e ao infinito” (La
petite peur du XXème siècle, 1949). Para Candido Mendes, “o avanço do conhecimento da complexidade da
vida e seu controle, (foram) esvaziando toda visão fixista de uma ‘natureza’ ou
de uma ordenação previa às potencialidades do homem” (Por um humanismo da
encarnação, 2008).
As
reações de muitos membros do sínodo, alguns norte-americanos e o próprio chefe
da congregação da doutrina, o alemão Müller, mostraram como a Igreja ainda não
está preparada, na cúpula, para transformações. O relatório final do sínodo foi
uma volta atrás, à doutrina tradicional. Francisco assistiu todo o sínodo e não
interveio, deixando a liberdade para pensar, propor ou resistir: “falem com clareza e sem temor”,
declarou na abertura. Mas na mensagem deste ano novo lembrou: mesmo os cristãos
tem uma “tendência a resistir à
liberdade... A liberdade nos assusta... Uma nostalgia pela escravidão se aninha
em nossos corações, pois parece mais reconfortante do que a liberdade, que é
muito mais arriscada”. Francisco exigiu que fossem publicadas as posições
mais inovadoras do sínodo que não obtiveram maioria, com o número de votos que
conquistaram. Indicavam tendências emergentes.
Agora,
Francisco convoca um sínodo ordinário, mais amplo, para outubro de 2015. Um
novo questionário está sendo enviado às igrejas locais. No Vaticano II os
primeiros documentos, rotineiros e tradicionais, foram postos de lado ao final
da primeira sessão. Não poderá repetir-se uma dinâmica de abertura e de
inflexão entre os dois sínodos? Francisco não quer sozinho, ditar novos
preceitos. Ele espera que estes surjam da prática e da sensibilidade das
comunidades cristãs. Nisso parece consistir sua pedagogia: aguardar o
surgimento de novos consensos, para que ele possa assumi-los.
E
aqui lembro as lições de um grande teólogo, John H. Newman (1801-1890), beatificado
por Bento XVI em 2010. Sacerdote anglicano converteu-se ao catolicismo romano
em 1845. Escreveu no ano de sua conversão, um tratado sobre “o desenvolvimento da doutrina” (An Essay on
the Development of Christian Doctrine, texto de 1845, revisto em 1878). A
doutrina, no seu entender, é dinâmica e foi se desdobrando através dos tempos.
Para Newman, isso se dá através do “consensus
fidelium”, o acordo entre os fieis, pela história afora. Apresentou,
inclusive, um exemplo muito revelador. Num célebre artigo na revista The
Rambler, de 1859, lembrou que, no século IV, a Igreja viveu uma profunda crise.
A maioria dos bispos era ariana, isto é, negava a divindade de Cristo. O
próprio papa Liberio estava indeciso. Para o autor, o que salvou o pensamento ortodoxo
da fé em Cristo como membro da Trindade, foi o sentir do povo cristão (e Congar acrescentou a reflexão de
teólogos). O povo de Deus, não uma maioria de bispos e nem o próprio papa,
foi o que afirmara com força a doutrina trinitária, apoiando o patriarca
Atanásio de Alexandria, exilado várias vezes em sua luta contra o arianismo.
Para Newman, seria necessário estar à escuta do que as comunidades cristãs vão
expressando.
Se
pensarmos na prática real dos fiéis em relação ao matrimônio, ao segundo
casamento, à contracepção e aos métodos de limitação da maternidade, assim como
outros, sobre o celibato eclesiástico obrigatório e a ordenação de mulheres, a
partir de pesquisas como as do importante centro norte-americano Pew Forum, e
outras feitas nos vários países, inclusive no Brasil, uma significativa porção
dos cristãos estão pedindo mudanças radicais. Do contrário, teremos uma posição
esquizofrênica, entre uma doutrina proclamada cada vez mais no vazio e uma
prática real dos cristãos. O Cardeal Martini, antes de morrer, em seu
testamento espiritual, indicou que a doutrina, em áreas como da sexualidade e
do matrimônio, estava atrasada em várias décadas e que o documento de 1968 de
Paulo VI, Humanae Vitae, sobre a contracepção, reiterando documento anterior de
Pio XI de 1930, tivera uma função paralisante e negativa.
O
filósofo católico Pietro Prini, num livro provocador, falou de um cisma oculto
ou subterrâneo (Lo scisma sommerso, 1999),
a partir de uma quebra de comunicação entre Igreja e sociedade. Rompeu-se a
comunicação entre o emissor da mensagem com seus códigos tradicionais (a Igreja) e o receptor contemporâneo
com sua nova sensibilidade e novas necessidades. Sempre deveria haver uma
reciprocidade ativa entre quem envia e quem recebe uma mensagem. Este último, o
conjunto dos fieis, não é um ser passivo que, indiferente, acolheria enunciados
gerais, a-históricos ou passadistas, mas tem uma qualificação psicológica, mental,
social e histórica precisa. Uma certa linguagem clerical, autoritária e
impositiva, passa a não lhe dizer grande coisa. Seu comportamento vai se
configurando à margem de normas e prescrições que lhe parecem estranhas e
incompreensíveis. Frente a uma ética e a receitas com invólucros de outros
tempos, o fiel comum não entra em heresia (negação
de uma doutrina), mas toma, na prática, um distanciamento da autoridade (distacco em italiano), que
caracterizaria mais bem um cisma de fato, um não recebimento de uma mensagem ou
ordem na qual não descobre sentido. Não se trata propriamente de indiferença,
mas de um processo de filtragem. Isso fica claro no que se refere à ética da
sexualidade (uso de anticoncepcionais,
por exemplo). As falas do magistério podem perder-se no vazio da não
comunicação.
Uma
pesquisa do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), sobre desafios do catolicismo
em seis grandes cidades do Brasil, no ano 2000, (CERIS/Paulus 2002) mostrou fortes discrepâncias entre a conduta
individual dos católicos e as orientações da Igreja. O jornalista católico
americano Peter Steinfels, que escreveu uma dura crítica ao pensamento oficial
de sua Igreja, num livro sobre “um povo à
deriva” (A people adrift,The crisis of the Roman Catholic Church in
America,2008), relata outra pesquisa de 1993, indicando que 8 entre 10 católicos americanos não aceitavam
a afirmação de que o uso de métodos artificiais de controle da natalidade era
errado; 9 de cada 10 consideravam que alguém que utilizasse métodos artificiais
poderia ser um bom católico. Lucia Ribeiro, numa pesquisa sobre “Práticas reprodutivas entre mulheres das
comunidades eclesiais de base da Igreja Católica” (1997), na Baixada
Fluminense, constatou que o comportamento delas com respeito às práticas
reprodutivas, não se distingue das mulheres em geral, com outras crenças ou sem
elas.
Essas
práticas poderão abrir caminho ao repensamento doutrinário, não através de um
debate teológico abstrato, mas de situações pastorais concretas. É por esse
viés pastoral, com um olhar de misericórdia, que a doutrina vai se
desenvolvendo. Penso ser essa a paciente atitude de espera de Francisco (“Quem sou eu para julgar os gays”, lembrou
numa conversa informal no avião na volta do Brasil. E mencionou o caso das
mulheres paraguaias, depois de uma guerra criminosa que dizimou a população
masculina). E antes de tudo defendeu, na linha do Vaticano II, a liberdade
de consciência. Volto a Newman. Perguntado certa vez se ergueria um brinde ao
papa (era ainda Pio IX), declarou que
sim, desde que antes, erguesse um brinde à consciência. É a essa consciência
livre que se dirige Francisco, não para impor regras ou preceitos, mas para
possibilitar, com um profundo sentimento de compaixão, um repensamento
pastoral.
Quando
Leão XIII sucedeu ao antimoderno Pio IX, indicou que esperassem sua nomeação de
cardeais, para sentir os rumos diferentes de seu novo pontificado. E fez
cardeal o convertido Newman, para mal-estar de católicos ingleses tradicionais
e de Manning, o outro cardeal inglês. Assim também Francisco, nos dois
consistórios que nomeiam cardeais, dá sinais eloquentes nas escolhas que está
fazendo. Deixa de lado sedes que historicamente eram cardinalícias, como
Veneza, Turim ou Bruxelas/Malines; no Brasil, Brasília e Salvador. Nomeou, no
primeiro consistório de fevereiro de 2014, pela primeira vez, um cardeal no
Haiti, não em sua capital, mas numa pequena diocese do interior, Les Cayes. E
agora, em 20 de fevereiro de 2015, no segundo consistório, não há nenhum novo cardeal
dos Estados Unidos, do Brasil, da Polônia ou da França, somente um membro da
cúria; mas indica, pela primeira vez, cardeais do Cabo Verde, Moçambique,
Miamar, e na pequenina Tonga, na Polinésia, conjunto de 172 ilhas com apenas
cerca de cem mil habitantes, que terá o mais novo dos cardeais, com 53 anos;
também no Panamá, será o bispo de David, cidade pequena. Duas cidades têm
cardeais pela primeira vez: na Oceania, John Dew, em Wellington (Nova Zelândia) e não o de Sidney, na
Austrália; na Itália, Edoardo Menichelli em Ancona, diocese mediana (o bispo fora escolhido pessoalmente por
Francisco para o sínodo). Uma característica comum: ambos têm defendido a
comunhão para divorciados em segunda união e o reconhecimento de uniões
homossexuais. Mudanças no colégio que poderá eleger o próximo papa.
A
América Latina arejou a Igreja, nos anos setenta, com sua teologia da
libertação, duramente castigada pelo centro do poder romano da época. Hoje,
vemos em Francisco, uma prática da libertação, que ele considera ligada a uma
teologia popular argentina, da mesma família libertadora.
Porém,
o mais importante, é que Francisco, fiel a seu chamado de sair ao mundo, não
fala apenas no círculo fechado do espaço católico. No Brasil, visitando a
favela de Manguinhos, parou para rezar o Pai-nosso com um pastor e sua
comunidade evangélica. Na visita à Palestina/Israel, fez parar seu carro diante
do vergonhoso muro que o governo israelita construiu e, encostando nele sua
testa, rezou em silêncio. Dias depois,
fez o mesmo no Muro das Lamentações, caro aos religiosos judeus. E convidou os
líderes da Palestina e de Israel a irem a Roma e rezarem juntos por uma
situação aparentemente insolúvel.
Um
momento eloquente, como sinal de presença num mundo secular, foi seu encontro
com movimentos sociais de todo o mundo. Encorajados pelo Papa Francisco a "construir uma Igreja pobre e para os
pobres”, líderes de movimentos sociais, 30 bispos e leigos engajados com as
realidades e os movimentos sociais em seus países, participaram, em Roma, do
dia 27 de outubro ao dia 29, do Encontro Mundial dos Movimentos Populares. O
Brasil esteve presente com alguns representantes, entre eles o dirigente do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile e o
secretário geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner. Da Argentina veio o dirigente
do movimento dos catadores. Evo Morales, da Bolívia, participou como membro de
um movimento social e não como presidente. O Encontro teve por objetivo "elaborar uma síntese da visão dos
movimentos populares em torno das causas da crescente desigualdade social e do
aumento da exclusão em todo mundo, principalmente a exclusão da terra, do teto
e do trabalho”, e "propor
alternativas populares para enfrentar os problemas gerados pelo capitalismo
financeiro, a prepotência militar e o imenso poder das transnacionais, como a
guerra, a fome, desemprego, exclusão, despejos e miséria, com a perspectiva de
construir uma sociedade livre e justa”. O evento, com a metodologia
ver-julgar-agir, abordou três eixos de discussão, chamados simbolicamente de "Pão”, "Terra” e "Lar”.
No
segundo dia, momento do julgar, Francisco se reuniu com os participantes do
Encontro. Falou sobre o termo solidariedade: “é lutar contra as causas estruturais da pobreza, da desigualdade, da falta
de trabalho, da terra e da moradia, a negação dos direitos sociais e
trabalhistas. É enfrentar... os deslocamentos forçados, as emigrações
dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas
realidades que muitos de vocês sofrem... É estranho, mas se falo disso, para
alguns significa que o papa é comunista... Hoje, ao fenômeno da exploração e da
opressão se soma uma nova dimensão,... os que não podem ser integrados; os
excluídos são dejetos, restos. Esta é a cultura do descarte... No centro de
todo sistema social ou econômico tem que estar a pessoa, imagem de Deus... a
criação é um dom, é um presente, um dom maravilhoso que Deus nos deu para que
cuidemos dele e o utilizemos em benefício de todos, sempre com respeito e
gratidão... neste sistema (atual) ... se rende um culto idolátrico ao dinheiro!
Porque se globalizou a indiferença! ... Porque o mundo se esqueceu de Deus, que
é Pai; se tornou órfão porque deixou a Deus de lado''.
A
posição de liderança de Francisco foi se afirmando, neste ano de 2014 que
terminou, não somente na sua Igreja, mas em todo o planeta, hoje envolto em
tantas violências, mas guardando, aqui no Brasil e pelo mundo afora, sinais de
esperança e de renovação. A carta que os participantes do encontro de outubro
enviaram a Francisco no final de dezembro, expressa bem este sentimento: “Os movimentos populares do mundo estamos
muito orgulhosos e esperançosos com os frequentes exemplos que [Francisco] nos
tem dado. Sua coragem para enfrentar temas internos da Igreja e os temas
políticos que afetam os poderosos nos dá ânimo. O mundo não está perdido! A
humanidade tem energias suficientes para reverter e construir uma sociedade
mais justa, fraterna e igualitária”...
*Diretor do Programa de Estudos
Avançados em Ciência e Religião, Universidade Candido Mendes.
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