sábado, 5 de agosto de 2023

REFLEXÃO LITÚRGICA DA FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR – 06/08/2023

Cônego Rui José de Barros Guerreiro

A

 celebração da Transfiguração do Senhor é um acontecimento extraordinário na centralidade do mistério pascal de Jesus. Nesta revelação, “um pedaço de céu na terra”, os apóstolos são testemunhas de excelência: contemplaram a beleza, a santidade e a glória de Cristo.

Assim no mistério da cruz, iluminado pela glória do ressuscitado, irão compreender a fidelidade amorosa de Jesus à vontade do Pai, a novidade do seu messianismo e a sua entrega incondicional em sacrifício pascal pela salvação de todos. Esta forte experiência dá aos seus discípulos a sabedoria da cruz e a contemplação da divindade do crucificado e da Sua vitória. E tornará estes homens frágeis em audazes servidores do evangelho e doadores de suas vidas na mesma cruz.

A palavra de Deus para esta celebração usa verbos muito fortes. Um deles é o verbo ver. Também se usa o contemplar ou olhar. É um dos sentidos fortes em nossa vida.

No nosso itinerário de fé, o sentido que mais se nos pede é o ouvir ou escutar. O ver pertence mais à eternidade. Depois já não faremos mais perguntas porque O veremos tal qual Ele é.

O Profeta Daniel vê sinais maravilhosos que revelam a grandeza, a santidade de Deus, que se centralizam no filho do homem, a quem foi entregue o poder, a honra e a realeza e que todos os povos irão servir. Ele vê o ponto culminante da história da salvação, o Reino que jamais passará.

Pedro, Tiago e João são testemunhas do acontecimento que marca as suas vidas: a transfiguração. Estes são presenteados com uma maravilhosa manifestação de Deus. Tal fica gravado nos seus corações e na sua vida e servirá para ser referência nas horas de humilhação do Seu Mestre e sobretudo da morte na cruz. E servirá de estímulo no anúncio/testemunho de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, morto e ressuscitado. É uma história de amor verdadeiro com o selo da sua autenticidade: a cruz, fonte de sabedoria e renovação de todas as coisas. Criação nova amassada no sangue de Cristo e no sopro pentecostal do Espírito, consequência da entrega de Cristo na cruz.

Hoje espera-se com ânsia corações apaixonados por Cristo. Que o conheçam verdadeiramente, na oração constante e permanente, como o respirar. Para tal é necessário o encontro assíduo com Ele, a escuta ávida dos sinais e da Palavra do Pai, da docilidade ao Espírito Santo. Uma relação de tu a tu capaz de atrair as vidas para uma doação incondicional. Se na realidade não formos capazes de O ver vivo, como Alguém que nos ama, nos interpela em compromisso, então também a nossa relação com Ele fica em meras recordações de sonho, de ausência de compromisso, de ausência de entusiasmo. Fica-se por uma vida de sonambulismo, de comodismo, de indiferença, de preguiça. E por isso o “Levantai-vos e não temais”.

Iluminados pelo esplendor do rosto de Cristo também a nossa vida resplandece e fica transfigurada, capaz de transfigurar outras vidas que passam para a luz, para glória a que fomos chamados.

A fé nasce da audição. A nossa fé nasce da escuta da Palavra de Deus. A capacidade para ouvir nasce no dia do nosso batismo: “efáta: abre-te”. Despertar o nosso ouvido para a voz maravilhosa de Deus que se revela: “Não foi seguindo fábulas ilusórias que vos fizemos conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Ouvir e aceitar a proposta do Pai: “Este é o meu filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O”. O que o Pai mais nos pede é que escutemos Jesus. Ele também O escuta. E escuta sempre deliciando-se na beleza da palavra de Seu Filho. Escuta nas horas da sua oração: “Pai dou-te graças”, “Pai eu te louvo”. Escuta nas horas de agonia e cruz com o ouvido mais belo de amor: “faça-se a Tua vontade”! “Pai perdoa-lhe…”, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito” E Jesus escuta o Pai com um amor e fidelidade que O comovem: “Este é o meu Filho muito amado”.

Os três discípulos escutaram, guardaram, viveram e se tornaram testemunhas. No Tabor viram coisas belas. No calvário viram a loucura da cruz. Tornaram-se testemunhas da morte e ressurreição.

Este é o tempo privilegiado para sermos testemunhas. Nós já temos muito mais que Pedro, Tiago e João. Temos uma história de amor de mais de 20 seculos com imensos apaixonados que se envolveram no mesmo projeto. Conhecemos a história desta família, a Igreja, que ultrapassou crises e dificuldades incríveis. Conhecemos a força deste amor. Ninguém pode ficar à margem. Para isso basta deixar-se apaixonar por este Filho que o Pai pede que escutemos, amemos e sigamos.

A todos os que viram e ouviram, não lhes foi pedido que assistissem a um belo espetáculo de mera curiosidade, mas que tal experiência ajudasse no anúncio e testemunho do mistério da vida e missão de Jesus Cristo.

É o que se passa com os santos. Eles não recebem experiências fantásticas para se recolherem no conforto das recordações, ou viverem na segurança da sua excelência e nos pensamentos da sua invejável santidade. Tais experiências são proporcionais à enorme tarefa que se lhes é pedida e confiada.

Os primeiros discípulos iriam ter a enorme tarefa de levar avante o projeto de Jesus Cristo. Diante de imensas e difíceis dificuldades, frente a um mundo hostil, agressivo, não tiveram medo de calcorrear caminhos. Gravaram na mente e no coração o “levantai-vos e não temais”.  Também não tiveram medo da sua pequenez e fragilidade porque iam em nome de Cristo e no dinamismo do seu amor: “Não fostes vós que me escolhestes. Fui eu que vos escolhi e vos destinei, para que deis fruto e o vosso fruto permaneça”.

Hoje vivemos também tempos de extrema fúria, radicalismos fanáticos, oposição ignorante, ventos de ódio, de indiferença e incredulidade. É toda uma onda de oposição a Deus e ao Seu Cristo. A única atitude vencedora é a sabedoria da Cruz que leva em si a glória do Ressuscitado, pois é a expressão de amor total e da vitória definitiva desse amor.

Não há testemunho sem apaixonados. Não há viragem significativa sem apaixonados da sabedoria da cruz, e sobretudo do Mestre crucificado. Este estar apaixonado permite descobrir, porque o amor vê mais longe, os que são preteridos, esquecidos, abandonados, os que sofrem. Esse estar apaixonado, como S. João da Cruz dizia: “o amor não cansa nem se cansa”. Nas horas de êxito ou de aparente fracasso: “Levantai-vos e não temais”.

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