Reis e rainhas não servem de modelo para a representação gloriosa de Jesus
Padre Anderson Marçal
A
|
solenidade deste último domingo do ano
litúrgico da Igreja nos coloca frente à realeza de Jesus. Criada em 1925, pelo
Papa Pio XI, esta festa litúrgica pode parecer pretensiosa e triunfalista.
Afinal, de que realeza se trata?
Para superar a ambiguidade que permanece,
precisamos ir além da visão do Apocalipse, cujo hino na segunda leitura canta
que “Jesus é o soberano de todos os reis da terra”. Ora, reis e rainhas não
servem de modelo para a representação gloriosa de Jesus. Mesmo que seja para
colocá-Lo acima de todos os soberanos. Riquezas, palácios, criadagem e
exércitos não são elementos que sirvam para exaltar a entrega de Jesus por nós.
Jesus está na outra margem, Ele é a antítese da realeza da riqueza e do poder.
Não é por acaso que os evangelhos da liturgia de hoje, nos ciclos litúrgicos A,
B, e C da Igreja, sempre nos colocam no contexto da Paixão de Jesus para
contemplar Sua realeza.
Jesus foi Rei, durante sua vida, em apenas
dois momentos: ao entrar em Jerusalém como um Rei pobre, montado em um jumento
emprestado e ao ser humilhado na Paixão, revestido com manto de púrpura-gozação
e capacete de espinhos; Rei ao morrer despido e com o peito traspassado na
cruz. Rei da paz e Rei do amor sem limite até a morte. A realeza de Jesus é a
realeza do Amor Ágape de Deus por toda a humanidade e por toda a criação.
Esta festa é ocasião propícia para podermos
reconhecer, mais uma vez, que na cruz de Jesus o poder-dominação, o poder
opressor, criador de desigualdades e exclusões, espalhador de sofrimento por
todos os lados, está definitivamente derrotado. Isso se deu pelo seu modo de
viver para Deus e para os outros. O fracasso na cruz é a vitória de Jesus sobre
o mal, o pecado e a morte, por meio de Sua Ressurreição.
Essa festa se torna então reveladora de um
tríplice fundamento para a nossa esperança de que as promessas de Deus serão
cumpridas até o fim.
O surgimento da matéria e sua evolução, desde
o big-bang ─ quando toda a energia do Universo se concentrava em um único ponto
menor do que o átomo ─ são o primeiro fundamento de nossa esperança.
Deus é criador respeitando as leis daquilo
que criou. Nós nos damos conta de que a soberania d’Ele vem se cumprindo num
Universo em expansão, uma vez que a evolução da matéria atingiu seu ponto ômega
ao dar à luz Jesus de Nazaré, por meio de Maria, porque n’Ele está a Humanidade
humanizada para todos os homens e mulheres, de todas as gerações.
O segundo fundamento é a pessoa de Jesus de
Nazaré. O sonho de uma humanidade humanizada ─ tornada aquilo que ela é ─ vem
expresso na primeira leitura do livro de Daniel, na figura de um Filho de Homem
─ figura antitética dos filhos de besta, filhos da truculência, dos povos
pagãos que oprimiram Israel com seus exércitos. O sonho tornou-se realidade em
Jesus Cristo. Ele nos humaniza com a Sua divindade: nunca Deus esteve tão perto
de nós, sendo um de nós e sem privilégios; mas também sem crimes nem pecados
(cf. epístola aos Hebreus). Jesus nos diviniza com a sua humanidade, tão humano
que é, que só pode vir de Deus e ser d’Ele mesmo.
O terceiro fundamento de nossa esperança é a
comunidade eclesial de fé, dos amigos e discípulos de Jesus. Olhando essa
grandeza, entendemos o sentido último de nosso batismo, pois na realeza de
Jesus fomos batizados para sermos reis e rainhas; no sacerdócio de Jesus, para
sermos sacerdotes e sacerdotisas; no profetismo de Jesus, para sermos profetas
e profetisas, para viver segundo o imperativo da Palavra de Deus revelada em
Seu Filho.
A soberania dessa realeza consiste no serviço
da cultura da paz e da solidariedade, da compaixão e da fraternidade. O poder
que corresponde a essa realeza é o do exercício da autoridade que serve, para
fazer o milagre da diversidade tornar-se unidade.
No sacerdócio de Jesus nos unimos à Sua missão
de gastar a vida pelos demais. Sabemos por Ele qual o modo de existir que nos
conduz à vida verdadeira; qual a religião que agrada a Deus. A esperança posta
no sacerdócio de Jesus é também certeza de que a vida gasta por compaixão e
solidariedade é a vida feliz e bem vivida.
Nossa esperança é profética, pois a força da
Palavra inaugura o futuro. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia…”,
cantava Chico Buarque nos anos da ditadura. Era a palavra do poeta vencendo a
força bruta. Vivendo o tempo presente no coração da comunidade de fé, que é a
Igreja, sentimos que uma força maior se move em nós, nos comove para abrir-nos
em direção ao futuro, pois nossa esperança não se funda somente em Deus,
sentido radical do futuro ou, como diz o provérbio, que “o futuro a Deus
pertence”. Mas é o Senhor mesmo a quem esperamos e quem nos espera no futuro.
Isso que é ter esperança: esperar Deus mesmo!
A festa de hoje nos faz contemplar a
existência do universo, necessária para que surgisse o grande presente de Deus oferecido
a toda a criação, que é Jesus. Desta forma, nossa esperança se sustenta também
nos cantos dos bem-te-vis e sabiás; nas rosas e margaridas; nas crianças e nas
borboletas; nos homens e mulheres de boa vontade; nas pedras e nos vulcões; nas
nuvens, na lua e nos planetas; nas estrelas e nas galáxias. Se existe tudo isso
e não o nada, nossa esperança tem pé, cabeça e coração.
Assim, como São Paulo, vivemos na esperança,
mas sabendo de seu tríplice fundamento: aquele da evolução do universo, que
culminou em Jesus, pelo dom de Maria; aquele que é Jesus, que por nós se doou
na cruz, abrindo para nós um modo de viver para Deus e para os outros, que é
verdadeira salvação; e aquele que é a Igreja, a nossa comunidade de fé, que nos
lança e sustenta na abertura radical ao futuro, esperando Deus que vem e que
nos acolhe com amor infinito, por meio do seguimento de Seu Filho, por quem
recebemos a vida e a plenitude da graça de Deus.
Anderson Marçal Moreira é padre da Igreja Católica Apostólica Romana.
Natural da cidade de São Paulo (SP), padre Anderson é membro da comunidade
Canção Nova desde o ano 2000. No dia 16 de dezembro de 2007, foi ordenado
sacerdote. Estudou Teologia Pastoral Bíblica-Litúrgica na Universidade
Salesiana de Roma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Informe sempre no final do seu comentário o seu nome e a sua Cidade.